O sistema previdenciário brasileiro foi construído
em muitas etapas, com acúmulo de conquistas e erros. Atingiu no
texto constitucional o objetivo de apontar a Previdência como um
sistema de proteção social solidário, com olhar para atuais e futuras
gerações, estabelecendo que a aposentadoria deve ser um direito
a ser usufruído com qualidade de vida e tranqüilidade após interrupção
da atividade laboral. São quatro os argumentos que têm retirado
da análise a devida transparência e verdade. Primeiro, a urgência
da reforma previdenciária, sem o que afirma-se ser impossível sairmos
da crise econômico-financeira.
Sabe a sociedade que as razões estruturais que nos levaram à atual
situação nada têm a ver com as regras previdenciárias. A lógica
que balizou a economia na última década vendeu ao povo brasileiro,
inebriado pela inflação zero, a ilusão de investimentos produtivos
do capital externo, determinou falsa paridade cambial, juros altos,
quebra do parque produtivo e falências. O dramático resultado já
conhecemos e acabamos de rejeitá-lo nas urnas. A farra lucrativa
de poucos grandes bancos choca a sociedade no contraponto de sua
miserabilidade.
A seguridade social tem sido um dos poucos sustentáculos da renda
familiar. Um forte instrumento dos brasileiros contra a onda liberalizante
da economia e dos direitos sociais. Tem sido a seguridade vítima
dos pilares econômicos atuais, já herdados dos últimos dez anos,
como fonte ilegal e ilegítima de constantes desvios promovidos oficialmente,
para compor o chamado superávit fiscal. Aí sim é dada a necessidade
urgente de impedir que o valor cada vez mais aviltado dos benefícios
previdenciários, seja suporte dos lucros financeiros.
A segunda argumentação recai sobre a situação de iminente falência
da Previdência. Nova inverdade. Apesar da voracidade do governo
anterior em servir ao capital financeiro e não cumprir a sua parte
do orçamento fiscal na composição do orçamento global da seguridade
social, em 2002, ela apresentou um superávit de 48 bilhões de reais,
de acordo com o Siaf. E continua superavitária mesmo computando
todos os gastos com o regime dos servidores.
A análise dirigida de receita e gasto no regime próprio dos servidores
civis aponta tendência de curto prazo de um crescimento mínimo de
gastos com pessoal ativo e inativo e redução do chamado déficit
específico frente ao PIB. Mesmo nos entes federativos, qualquer
análise de mudança requer calma, na medida em que as alterações
aventadas aumentarão brutalmente o desequilíbrio de seus caixas
de previdência.
A terceira argumentação, uma verdadeira armadilha, é confundir direitos
com privilégios. Privilégios são indefensáveis e devem ser enfrentados
com a força da decisão política e utilizando-se do arcabouço de
leis já existentes e até mesmo com as alterações legais que se fizerem
necessárias para balizar decisões judiciais e administrativas.
Por último vem o argumento de que os regimes de capitalização são
formadores de poupança nacional, principalmente quando os fundos
limitam-se ao mercado privado, cujos compromissos não são necessariamente
com o Brasil, nem com o setor produtivo. O mais grave é não permitir
ao poder público o comando dos investimentos.
Queremos debater direitos, deveres e os ajustes necessários. No
regime geral, as mudanças devem ocorrer para incluir quem está fora.
Geração de empregos formais, crescimento da economia e estabelecimento
de critérios mais acessíveis a população de baixa renda. Definir
o índice de ajuste das aposentadorias e repensar o teto de contribuição
e benefícios, que deve ser aumentado e referenciado em número de
salários-mínimos. Ampliaríamos assim receita pública e diminuiríamos
os riscos destes direitos, se jogados no mercado.
O regime próprio dos servidores deve ser tratado no âmbito conceitual,
qual seja, a reconstrução do Estado Nacional. O servidor público
não é um servidor dos governos, senão do povo, através da sua vinculação
ao Estado. A carreira pública enseja especificidades bastante diferenciadas
do setor privado.
Ser servidor público é uma opção de vida, que precisa de estímulo
e garantias para o percurso e final da carreira. Maus serviços ou
maus funcionários devem ser tratados com o rigor que uma administração
paga pela sociedade deve ter. A reconstrução deve considerar a reestruturação
de um quadro funcional próprio estimulado e valorizado, cumpridor
de sua missão de bem atender a sociedade nos setores estratégicos.
Isto resultará em aumento de receita para a sustentabilidade das
aposentadorias e pensões.
Com fontes diferentes de custeio e importantes diferenças na relação
com o Estado, a unificação dos regimes público e privado carece
de sustentação política, jurídica e atuarial. O direito à aposentadoria
integral obriga a contribuição dos servidores sobre o total dos
vencimentos. Importante fonte de receita para o caixa público, na
medida em que 60% dos servidores ganham abaixo do teto definido
para o regime geral privado e os que ganham acima se limitados,
além de nivelados em patamar inferior, deslocariam esta receita
para o mercado financeiro privado, retirando o aspecto solidário
desta contribuição aos atuais inativos e pensionistas.
Os donos das instituições financeiras aguardam por este público
com razoável estabilidade de emprego. Sem contar que levariam aos
entes públicos federal, estaduais, municipais e distrito federal
o imediato desembolso de recursos para o INSS, como empregadores,
e aos bancos, como patrocinadores, aumentando o divulgado déficit
e quebrando vários destes entes. Preocupa-nos a repercussão dessas
alterações sobre o Regime Geral, que não será preservado quando
não houver qualquer sustentabilidade para o passivo do regime próprio,
achatando ainda mais o teto e o valor dos benefícios. Ou seja, desmontamos
os dois.
Ajustes podem e devem ser feitos, averiguando novos e maiores prazos
de carência, valor das contribuições, critérios e regras contidas
no regime dos militares, que tem suas especificidades. Se queremos
discutir poupança nacional via fundos de pensão, instituamos a previdência
complementar pública com critérios democráticos, responsáveis e
transparentes de gestão. Nenhuma reforma deve ser feita sem que
interrompamos a lógica que fundamentou as ações dos governos anteriores.
Faremos as mudanças necessárias, desde que sejam sustentadas nos
pilares de fortalecimento da Previdência pública, inclusão dos que
hoje estão fora da proteção social, e reconstrução do Estado Nacional.
JANDIRA FEGHALI é deputada federal pelo PCdoB.
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