MATÉRIA DO JORNAL O GLOBO DE 08 DE ABRIL DE 2003

MITOS DA PREVIDÊNCIA

O sistema previdenciário brasileiro foi construído em muitas etapas, com acúmulo de conquistas e erros. Atingiu no texto constitucional o objetivo de apontar a Previdência como um sistema de proteção social solidário, com olhar para atuais e futuras gerações, estabelecendo que a aposentadoria deve ser um direito a ser usufruído com qualidade de vida e tranqüilidade após interrupção da atividade laboral. São quatro os argumentos que têm retirado da análise a devida transparência e verdade. Primeiro, a urgência da reforma previdenciária, sem o que afirma-se ser impossível sairmos da crise econômico-financeira.

Sabe a sociedade que as razões estruturais que nos levaram à atual situação nada têm a ver com as regras previdenciárias. A lógica que balizou a economia na última década vendeu ao povo brasileiro, inebriado pela inflação zero, a ilusão de investimentos produtivos do capital externo, determinou falsa paridade cambial, juros altos, quebra do parque produtivo e falências. O dramático resultado já conhecemos e acabamos de rejeitá-lo nas urnas. A farra lucrativa de poucos grandes bancos choca a sociedade no contraponto de sua miserabilidade.

A seguridade social tem sido um dos poucos sustentáculos da renda familiar. Um forte instrumento dos brasileiros contra a onda liberalizante da economia e dos direitos sociais. Tem sido a seguridade vítima dos pilares econômicos atuais, já herdados dos últimos dez anos, como fonte ilegal e ilegítima de constantes desvios promovidos oficialmente, para compor o chamado superávit fiscal. Aí sim é dada a necessidade urgente de impedir que o valor cada vez mais aviltado dos benefícios previdenciários, seja suporte dos lucros financeiros.

A segunda argumentação recai sobre a situação de iminente falência da Previdência. Nova inverdade. Apesar da voracidade do governo anterior em servir ao capital financeiro e não cumprir a sua parte do orçamento fiscal na composição do orçamento global da seguridade social, em 2002, ela apresentou um superávit de 48 bilhões de reais, de acordo com o Siaf. E continua superavitária mesmo computando todos os gastos com o regime dos servidores.

A análise dirigida de receita e gasto no regime próprio dos servidores civis aponta tendência de curto prazo de um crescimento mínimo de gastos com pessoal ativo e inativo e redução do chamado déficit específico frente ao PIB. Mesmo nos entes federativos, qualquer análise de mudança requer calma, na medida em que as alterações aventadas aumentarão brutalmente o desequilíbrio de seus caixas de previdência.

A terceira argumentação, uma verdadeira armadilha, é confundir direitos com privilégios. Privilégios são indefensáveis e devem ser enfrentados com a força da decisão política e utilizando-se do arcabouço de leis já existentes e até mesmo com as alterações legais que se fizerem necessárias para balizar decisões judiciais e administrativas.

Por último vem o argumento de que os regimes de capitalização são formadores de poupança nacional, principalmente quando os fundos limitam-se ao mercado privado, cujos compromissos não são necessariamente com o Brasil, nem com o setor produtivo. O mais grave é não permitir ao poder público o comando dos investimentos.

Queremos debater direitos, deveres e os ajustes necessários. No regime geral, as mudanças devem ocorrer para incluir quem está fora. Geração de empregos formais, crescimento da economia e estabelecimento de critérios mais acessíveis a população de baixa renda. Definir o índice de ajuste das aposentadorias e repensar o teto de contribuição e benefícios, que deve ser aumentado e referenciado em número de salários-mínimos. Ampliaríamos assim receita pública e diminuiríamos os riscos destes direitos, se jogados no mercado.

O regime próprio dos servidores deve ser tratado no âmbito conceitual, qual seja, a reconstrução do Estado Nacional. O servidor público não é um servidor dos governos, senão do povo, através da sua vinculação ao Estado. A carreira pública enseja especificidades bastante diferenciadas do setor privado.

Ser servidor público é uma opção de vida, que precisa de estímulo e garantias para o percurso e final da carreira. Maus serviços ou maus funcionários devem ser tratados com o rigor que uma administração paga pela sociedade deve ter. A reconstrução deve considerar a reestruturação de um quadro funcional próprio estimulado e valorizado, cumpridor de sua missão de bem atender a sociedade nos setores estratégicos. Isto resultará em aumento de receita para a sustentabilidade das aposentadorias e pensões.

Com fontes diferentes de custeio e importantes diferenças na relação com o Estado, a unificação dos regimes público e privado carece de sustentação política, jurídica e atuarial. O direito à aposentadoria integral obriga a contribuição dos servidores sobre o total dos vencimentos. Importante fonte de receita para o caixa público, na medida em que 60% dos servidores ganham abaixo do teto definido para o regime geral privado e os que ganham acima se limitados, além de nivelados em patamar inferior, deslocariam esta receita para o mercado financeiro privado, retirando o aspecto solidário desta contribuição aos atuais inativos e pensionistas.

Os donos das instituições financeiras aguardam por este público com razoável estabilidade de emprego. Sem contar que levariam aos entes públicos federal, estaduais, municipais e distrito federal o imediato desembolso de recursos para o INSS, como empregadores, e aos bancos, como patrocinadores, aumentando o divulgado déficit e quebrando vários destes entes. Preocupa-nos a repercussão dessas alterações sobre o Regime Geral, que não será preservado quando não houver qualquer sustentabilidade para o passivo do regime próprio, achatando ainda mais o teto e o valor dos benefícios. Ou seja, desmontamos os dois.

Ajustes podem e devem ser feitos, averiguando novos e maiores prazos de carência, valor das contribuições, critérios e regras contidas no regime dos militares, que tem suas especificidades. Se queremos discutir poupança nacional via fundos de pensão, instituamos a previdência complementar pública com critérios democráticos, responsáveis e transparentes de gestão. Nenhuma reforma deve ser feita sem que interrompamos a lógica que fundamentou as ações dos governos anteriores. Faremos as mudanças necessárias, desde que sejam sustentadas nos pilares de fortalecimento da Previdência pública, inclusão dos que hoje estão fora da proteção social, e reconstrução do Estado Nacional.

JANDIRA FEGHALI é deputada federal pelo PCdoB.

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